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segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Sessão pipoca


Esse filme de hoje não tem nada em comum com os demais que já tenho falado por aqui.

Trata-se de duas formas de governo,o nazismo e o fascismo,muitos devem estar achando que é um filme antigo,mas vou logo avisando que não tem nada relacionado à II Guerra Mundial,ok? Devem estar se questionando: Como? Sim. É ai que vem o enredo abrilhantando e fisgando a nossa mente.



A Onda, Die Welle, é um filme realizado [dirigido] na Alemanha em 2008 por Dennis Gansel. Um professor amante de rock e com simpatia pelo anarquismo − personagem apesar de tudo frequente e revelador dos anseios frustrados de antigos estudantes insubmissos que acabaram por integrar o rebanho − foi encarregado pela directora da escola de dar um curso sobre os regimes autocráticos. Na Alemanha, inevitavelmente, o fascismo iria ser o tema dessas aulas, e como ninguém queria ouvir mais uma vez as banalidades de sempre sobre o Terceiro Reich e a culpabilidade alemã, o professor decidiu romper a barreira do desinteresse procedendo a uma experiência pedagógica. Propô-la aos alunos e eles aceitaram. Durante uns dias, o professor obrigaria os alunos, com o consentimento deles, a cumprirem os rituais físicos da disciplina de massas, esperando que eles aprendessem assim o conteúdo ideológico dessa disciplina.
Ao ver o filme, qualquer português da minha idade encontrará ali as aulas de Educação Física da sua infância. O que nos obrigavam a fazer! Talvez por isso todos nós, os jovens esquerdistas, éramos péssimos em ginástica. Se o taylorismo é a disciplina do corpo para a produção, o fascismo foi a disciplina do corpo para a política. Na experiência pedagógica daquele professor tudo começou com gestos simples, o levantar e o sentar, o estar sentado direito e de pés juntos.
E o professor tinha razão, porque antes de ser uma ideologia ou uma forma de governar, o fascismo fora acima de tudo um ritual colectivo, a encenação diariamente repetida da hierarquia e da submissão, da ordem enquanto anulação do indivíduo na grande colectividade, na pátria ou na raça.
O passo seguinte, não menos decisivo, foi a escolha de um uniforme, porque o uniforme não é apenas um símbolo de identidade do grupo. Muito mais do que isso, no fascismo o uniforme era uma máscara que ocultava as diferenças sociais, aquilo que já não sei que crítico britânico denominou «sartorial socialism», socialismo de alfaiate. E o pior é que foi esta a argumentação empregue por alguns alunos para convencer outros, mais renitentes, a aceitar o uniforme. Ele é democrático, diziam eles, pois reduz todos à mesma condição. E não é a democracia nos dias de hoje o mais insuspeito e incontroverso dos valores? Democrático dentro das paredes da sala de aulas, porque lá fora, apesar de envergarem roupa idêntica, os alunos eram ricos ou pobres ou assim-assim, sem que competisse ao uniforme abolir aquela realidade fundamental. A discussão na turma a propósito da adopção de uniforme foi das mais sugestivas, porque surgiu ainda o argumento de que nas democracias as fardas são comuns e até os executivos das empresas adoptam padrões de vestuário. Precisamente. Será que o fascismo foi democrático? Ou é a democracia que é fascista? E não podia ser mais aterrador o uniforme criado pelo professor e pelos alunos, calças jeans azuis e camisa branca. Na sua inteira banalidade, este uniforme lembrou-me o que John Le Carré descreveu em A Small Town in Germany, onde relatou o desenvolvimento de um fascismo pós-fascista, um movimento cinzento e anónimo de mediania social.
Adotado o uniforme, impunha-se naturalmente a escolha de uma saudação, o outro elemento ritual necessário para a identificação do grupo. E como o desporto aquático era a especialidade daquele professor e daquela turma, a saudação acabou por ser um gesto de braço reproduzindo o movimento de uma onda. Aquela tribo adquirira o seu nome e o seu totem. A Onda.
Porém, o que começara como um jogo continuou como um mecanismo inelutável, cujas engrenagens já não puderam ser sustidas e cujos efeitos não puderam ser travados. A sociedade não é um laboratório e as experiências sociais têm efeitos reais. A partir do momento em que se começa a fazer algo como experiência, ela deixa de ser gratuita. Talvez seja esta a maior lição de um filme que tem tantas. Contrariamente ao que imaginam os pós-modernos, a futilidade é uma coisa muito séria.
Uniforme, saudação, rituais, disciplina de massas, este conjunto excluiu todo o resto. As aulas deixaram de ser − ou de pretender ser − a transmissão ou a partilha de um conhecimento e converteram-se na mera afirmação da identidade do grupo. A vida privada foi eliminada. Não só a vida privada, aliás, mas todos os tipos de existência que ultrapassassem os limites do grupo. A Onda não tinha vias de saída, nem sociais nem mentais. A redução da existência a uma perspectiva única, é isto o totalitarismo, e o apelo aos sentimentos é aqui um dos procedimentos mais eficazes. Lealdade, afeto, devoção, nada disto podia ser gasto com namoradas ou com colegas, mas apenas com o grupo ou com as pessoas enquanto membros do grupo. A confusão do político com o afetivo, que ameaça todos os grupos, constitui o grande risco do totalitarismo, tanto mais perigoso quanto é a sedução da demagogia fácil. A política exercida com a razão é o antídoto do fascismo, que sempre se apresenta como uma política da emoção.
A Onda deu aos alunos o que lhes faltava, o sentido de uma comunhão coletiva, mas com a condição de eles darem tudo… a quem? Ao grupo? Através da hierarquia instaurada, tudo é dado inevitavelmente ao chefe do grupo, por isso ele pode aparecer como o generoso dispensador de beneficios e de conselhos. O autoritarismo não é senão a exploração afetiva dos que se entregam à autoridade. O carisma não emana do chefe, é-lhe dado pelos que acreditam nele e que não têm consciência de que recebem de volta no plano simbólico aquilo que lhe concederam no plano real.
Mas não foi só através da repetição dos gestos da disciplina coletiva que os alunos assimilaram o fascismo, a ponto de o adotarem. O terreno propício estava criado pelo misto de ignorância e de ressentimento que caracterizava a quase totalidade dos estudantes daquela turma, como caracteriza a sua esmagadora maioria noutras escolas e em outros países. A ignorância não consiste em não saber,mas em não desejar saber. A ignorância é só outro nome que se dá ao desinteresse. O ressentimento é a outra face do mesmo problema. Referindo-se à base popular dos precursores do fascismo francês, Eugen Weber observou que ela se caracterizara por «odiar os ricos e desprezar os pobres», o que constitui a definição do ressentimento. Naquele caso, o ressentimento era antes de mais sentido pelo professor, licenciado com diplomas de segunda ordem, enquanto os colegas tinham vindo de melhores universidades. O ressentimento era sentido também por muitos alunos e alunas, invejosos dos que tinham melhores notas ou melhores carros ou melhores roupas, das que eram mais bonitas e dos que eram mais atléticos. Como ninguém tem tudo, a semeadura do ressentimento encontra campos férteis. E assim os perdedores de sempre, os tímidos, os incapazes sentiram-se fortes em grupo e foram eles quem forneceu à turma a estrutura embrionária das tropas de choque.
Se  tivesse começado a espalhar-se pela cidade, o fascismo de A Onda fora gerado dentro das paredes de uma sala de aula e mantinha na escola a sua base de sustentação. Foi a estrutura escolar que forneceu o quadro daquela experiência. O professor não inventou uma nova relação com os alunos, apenas deu outro rigor e marcou de outro modo a hierarquia subjacente à vida da escola. Normas, submissões e comportamentos que no cotidiano aparecem de maneira dissimulada passaram para o primeiro plano e preencheram toda a cena. Ainda aqui o filme indica um dos mais importantes caminhos para a análise do fascismo, porque entre as duas guerras mundiais o fascismo jamais poderia ter ascendido e imperado sem o quadro prévio que lhe fora fornecido pelo liberalismo burguês. Compreenderemos o mecanismo básico do fascismo se soubermos que ele foi uma revolta no interior da ordem, não contra a ordem − ainda que,  em alguns casos, pudesse tê-la derrubado depois. Do mesmo modo, aquele fascismo escolar surgiu no interior da hierarquia docente e contou com a proteção discreta, embora significativa, da diretora da escola, numa ocasião em que o barulho dessas estranhas aulas começou a incomodar os professores conservadores que davam aulas ao lado. 

E na perspectiva dos tempos livres vemos que a escola não foi o único quadro constitutivo do fascismo de A Onda. Os pequenos grupos informais existentes entre os alunos, as minúsculos gangues de esquina que alguns deles formavam nos corredores da escola ou nas ruas da cidade, foram mobilizados para influir no grupo mais vasto, e ao mesmo tempo que perderam a sua identidade contribuíram para dar ao movimento uma identidade única e coesa.

É importante ressaltar que não estamos isentos de sermos mergulhados num regime totalitário,pelo contrário,é muito simples,surge a partir de uma ideia e essa mesma ideia se for comum à um pequeno grupo,pode crescer em tomar proporções inimagináveis.
Bom,assistam! É excelente!
Ps: Leitores,queridos,desculpem pelo tamanho,mas é que quando o assunto tem tantas vertentes não consigo me conter rsrs. Desculpem mais uma vez.
Beijos e abraços,
marilimab.

4 comentários:

  1. Esse filme é tudo de bom, Mari!

    Adoro muito muito muito menos!

    E que final impactante, né???

    Muito muito boa a sua recomendação!

    supeeeeeeeeeeeeeeeeeer beijo bem grandão!

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  2. ai, meu deus, eu quis dizer ADORO MUITO MESMO e não ADORO MUITO MENOS!

    hihihi

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  3. aaah obrigada,Luz! Eu tava editando até agora por conta da cor, rsrs

    Que bom q você gostou!
    Beeijos imensos.

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  4. hahaha,tudo bem,eu entendi =)
    O final é suuper impactante,te deixa até com vontade de filosofar acerca dos diversos temas abordados...

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